Reforma administrativa: ataque ao Estado social e à Constituição

O projeto de reforma administrativa não agride apenas os direitos dos servidores. Aliás, o essencial do projeto parece estar passando despercebido para toda a sociedade, inclusive para as forças democráticas. Não é dos servidores que se trata, é do Estado. O que está em jogo é a forma como o Estado vai garantir os direitos sociais do povo.

Como sempre, o governo busca criminalizar os servidores e os serviços públicos, apontando-os como “os grandes culpados” por tudo que há de ruim no país, martelando fortemente esta falsa ideia na mídia para viabilizar todas as reformas que objetivam retirar direitos dos servidores e suprimir serviços públicos.

O que o governo quer com a reforma, de fato, não é apenas o que aparece em primeiro plano. Sob o pretexto de aumentar a eficiência e melhorar a prestação dos serviços públicos, o governo propõe uma modificação radical na estrutura do Estado brasileiro, alterando o Artigo 37 da Constituição Federal, incluindo, dentre os princípios da administração pública, a subsidiariedade.

Isso pode até não parecer muito significante, diante das inúmeras outras medidas que fragilizam a relação contratual dos servidores públicos, mas a introdução do princípio da subsidiariedade pode ser considerada como sendo o grande projeto do Estado neoliberal.

A subsidiariedade é um princípio que estabelece que o Estado abre mão do protagonismo como provedor do bem-estar e atua apenas de forma residual, caracterizando o Estado mínimo. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu as bases que nos caracteriza como um Estado de Bem-estar social, onde, ao contrário do Estado mínimo, o provimento do bem-estar é responsabilidade do Estado, cabendo ao mercado uma função residual no atendimento dos direitos. O Estado mínimo deixa de ter a obrigação universal de prover ao povo os direitos básicos de saúde, educação, assistência, previdência social, trabalho, obrigações estas previstas na atual Carta Magna.

O princípio da subsidiariedade é utilizado pelos liberais para privilegiar os interesses do mercado, na medida em que estabelece que o Estado auxiliaria e supriria a iniciativa privada em suas deficiências e carências, só a substituindo excepcionalmente. A atuação do Estado seria a exceção, não a regra.

A proposta do governo, ao incluir expressamente o princípio da subsidiariedade, coloca a administração pública a funcionar de forma absolutamente distinta do que estabelece a Constituição Federal, pois os servidores passariam a estar vinculados à prestação residual dos serviços essenciais.

Ou seja, a reforma administrativa, antes de um ataque aos interesses dos servidores públicos, deve ser vista como mais um ataque ao Estado social, previsto na Constituição Federal. A aprovação da PEC será o grande passo para a privatização da saúde, da educação, da previdência social, do saneamento básico, etc.

O princípio da subsidiariedade é a granada que o ministro da economia disse que estavam colocando no bolso do inimigo (nosso bolso) enquanto todos estavam preocupados com a pandemia.

A reforma administrativa é apenas a continuidade do grande projeto de desmonte do Estado social e eliminação dos direitos constitucionais, iniciado pelas reformas trabalhistas e da Previdência Social.

O grande projeto da reforma é suprimir todos os direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, substituindo o Estado de Bem-estar social pelo Estado mínimo.

A PEC abre as portas para todo tipo de parceria, terceirização e “cooperação” que vise passar para a iniciativa privada a prestação de serviços públicos, escancarando as portas para todo tipo de fisiologismo, indicação política e acomodação de apadrinhados dentro da máquina pública privatizada. Somada a essa política destrutiva, ainda teremos a desvalorização completa dos servidores públicos.

A PEC propõe o fim do chamado “regime jurídico único”, que trata da estabilidade dos servidores, para futuros servidores e institui cinco modalidades de contratação, garantindo estabilidade a apenas um deles:

1)Cargo típico de Estado: manterá a estabilidade, mas será restrito a posições estratégicas “absolutamente essenciais” do funcionalismo público. A estabilidade apenas será alcançada após três anos e o ingresso se dará por concurso público. As únicas possibilidades de desligamento seguem sendo sentença judicial, infração disciplinar e desempenho insuficiente. A definição de “cargos típicos de Estado” será formulada por uma Lei Complementar Federal. Além do concurso de provas ou de provas e títulos, passa a exigir, para os “cargos típicos de Estado”, como etapa para a investidura no cargo público, que o servidor fique dois anos com “vínculo de experiência” tendo desempenho satisfatório. Após esses dois anos, somente os mais bem avaliados que ficarem dentro do número de vagas ofertadas efetivamente serão investidos no cargo público. Durante o período de experiência o servidor não poderá desempenhar nenhuma outra atividade remunerada. Ou seja, o governo quer que a pessoa se dedique muito para um concurso, passe em uma prova altamente concorrida, abra mão de sua vida profissional no período de experiência para, após dois anos trabalhando no órgão, descobrir se ficou na frente dos demais candidatos (estarão em período de experiência mais candidatos do que vagas existentes).

2) Cargo por prazo indeterminado: será composto por servidores que desempenham função de apoio administrativo, com contratos de duração indeterminada, mas que não terão o direito à estabilidade. O ingresso se dará por meio de concurso público e a duração da atividade poderá depender da evolução da necessidade da função e até do contexto de evolução tecnológica. Um projeto de lei também definirá as hipóteses em que o vínculo poderá ser desfeito. Como visto, o candidato fará todo esse esforço para ingressar no serviço público em um cargo que não terá estabilidade e estará sujeito a perseguições políticas e ideológicas de todas as ordens.

3) Vínculo de experiência: O vínculo de experiência será considerado uma etapa do concurso público, com duração de no mínimo dois anos para cargos típicos de Estado e de um ano para cargos com prazo indeterminado, e não dará direito automático à posição. De acordo com a apresentação, somente os mais bem avaliados ao final do vínculo de experiência serão efetivados.

4) Vínculo de prazo determinado: será formado por servidores com contrato temporário, sem direito à estabilidade. O ingresso não se dará por concurso, mas através de seleção simplificada. A atual legislação que trata de contratos temporários permite esse tipo de atividade apenas em situações limitadas, de necessidade temporária, como desastres naturais. Neste caso a PEC irá ampliar as situações em que esse tipo de contratação será permitida. Evidentemente que neste tipo de contratação abrir-se-ão as portas para todo tipo de fisiologismo, indicação política e acomodação de apaniguados dentro da máquina pública.

5) Cargo de liderança e assessoramento: ocupará o espaço que hoje é ocupado por cargos comissionados e funções gratificadas. Resta claro que este tipo de contratação também irá escancarar as portas para todo tipo de fisiologismo, indicação política e acomodação de apadrinhados dentro da máquina pública.

A proposta irá permitir a redução da remuneração mediante redução de jornada de trabalho, o que fatalmente irá abrir uma brecha para que administradores mal intencionados possam inviabilizar a vida financeira de servidores, reduzindo os seus vencimentos. Lembre-se que a atualmente não é permitido em hipótese alguma a redução salarial, mesmo com redução de carga horária, justamente em razão do caráter alimentar da verba salarial.

A reforma ainda determina o fim de férias superiores a 30 dias por ano; fim dos aumentos retroativos; do adicional por tempo de serviço; das parcelas indenizatórias sem previsão legal; adicional ou indenização por substituição não efetiva; progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço; e incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções.

Prevê também a perda do direito à remuneração de cargo em comissão ou de liderança e assessoramento, função de confiança, gratificação de exercício, bônus, honorários, parcelas indenizatórias ou qualquer parcela que não tenha caráter permanente” durante os períodos de afastamento ou licenças dos servidores, salvo no caso de “afastamento por incapacidade temporária para o trabalho”, cessões ou requisições. As mulheres em licença gestante serão umas das mais afetadas nesse aspecto.

Ressalte-se que esta PEC é apenas a primeira fase do plano de ataque aos direitos dos servidores, estando previstas mais duas etapas posteriores. As demais tratarão, entre outras coisas, de estabelecer quais serão os cargos de liderança e assessoramento, estabelecer as normas para avaliação do desempenho dos servidores e promover ajustes nos estatutos dos servidores.

Ou seja, com a aprovação da PEC estar-se-á dando um cheque em branco para o governo, visto que ninguém nem imagina o que virá através das leis que comporão as etapas posteriores da reforma.

Frise-se que a PEC só retira direitos e não favorece em absolutamente nada a melhoria da prestação de serviços públicos. Além disso, ao contrário do que quer fazer crer o governo, não combate as desigualdades atualmente existentes entre os servidores, já que continuarão existindo servidores percebendo vencimentos no importe de um salário mínimo e outros percebendo quarenta mil reais ou mais.

Com a reforma os servidores estáveis poderão perder o cargo mediante uma simples decisão proferida por órgão judicial colegiado, enquanto atualmente a perda só pode ocorrer com o trânsito em julgado da decisão. Além disso, o cargo poderá ser perdido mediante avaliação periódica de desempenho em conformidade com a nova lei que virá na etapa posterior, cujo conteúdo ninguém conhece. Com isto acabará a obrigação do servidor ser submetido ao Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para eventual desligamento, no qual lhe é assegurado o amplo direito de defesa e ao contraditório.

O fim da estabilidade, em qualquer medida, é um atentado à democracia e abre portas para todas as espécies de perseguições aos servidores que não se adaptarem às chefias e aos governos de ocasião. Quem tiver um chefe criminoso, terá que se submeter a tudo para manter seu cargo, sem qualquer proteção legal decente.

A estabilidade foi constitucionalizada em 1934, justamente para impedir os desmandos dos governantes que trocavam os servidores a cada mandato, impedindo o aperfeiçoamento e a evolução dos serviços públicos. Assim sendo, o instituto da estabilidade não é um bem pertencente apenas aos servidores públicos, mas a toda a população. Por fim à estabilidade é o início do sucateamento dos serviços públicos. Neste caso não somente os servidores serão prejudicados, mas toda a população que necessita dos serviços públicos, principalmente os mais necessitados, é obvio.

É de rigor concluir, portanto, que lutar contra a reforma administrativa é defender a Constituição Federal, de 1988, o fortalecimento do Estado de Bem-estar e os direitos sociais.